quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

a grande estrada - capítulo 1,

existe um modo fácil de saber quando se está entrando nesse bairro, e esse modo mostra um pouco do que é a história desse lugar. A primeira coisa que te abandona é o entorno; não é raro nessa cidade, construída sobre mangues, encontrar restos de sua vegetação nos entornos de sua civilização, a civilização ainda não chegou em toda ela, por mais que tenha se esforçado. Mas aqui, nesse bairro, a civilização entrou de um modo particular, não há mangue nas encostas da estrada que leva ao coração desse bairro, mas há muito de outro mato. O concreto, o tijolo e o cimento pausam por alguns poucos quilometros para anunciar o Santa Maria.
Uma linha preta cortando verde; pelo tanto de mato que se tem de cortar para chegar ao bairro Santa Maria se pode imaginar que a distância entre esse lugar e o restante de Aracaju não seja apenas métrica; a prefeitura de Aracaju fez bastante esforço para não aceitar esse lugar em seus domínios, se rendeu no final. Oficialmente, depois de cortar todo o verde ainda estamos em Aracaju, o concreto, os tijolos e o cimento voltam, ainda assim de um modo diferente do que se via antes, veremos concretos em supermercados e prédios públicos, sem edifícios aqui, nada que ultrapasse um andar superior. Nas casa, os tijolos e cimentos ficam expostos, mostrando suas relações.
Poderíamos seguir o piche até o tribunal de justiça que nos aguardaria na outra ponta dessa estrada, mas não estamos seguindo o preto.
Passaram as quatro viaturas pela estrada, abandonaram, como nós, o piche. Entraram no Santa Maria naquela madrugada, para elas o verde era mais escuro, e a falta de lua e iluminação pública tornaram dificil para os dezesseis policiais verem o modo como tijolos e cimento se ligavam, mas possivelmente, eles não estariam interessados. Os carros iam rápido ao centro do Santa Maria, onde o barro e a areia ainda imperam. Todas as botas acertam o barro, que se estivesse molhado, lembraria delas por mais tempo do que os parcos segundos que as manteve em si. Cada par de botas carrega consigo mais do que uma arma de fogo, pelo que se pode ver nessa escuridão, uma longa e uma pequena - no mínimo. As grandes são das mais variadas formas; as pequenas, em seus coldres, difícil dizer.
Algum dos homens fala:
- Vamos.
E como se todos já tivessem feito aquilo antes viram-se de costas para as casas mal-feitas que antes tinha sob seus olhos e adentram um matagal, todos eles.
*
Todo o Santa Maria estava silencioso, profundamente silencioso, os sons mais audíveis eram das luzes que se lançavam ao redor dos carros da polícia. Os faróis dos carros lançavam luzes solitárias e inúteis, os carros, afastados entre si por talvez um passo, esperavam por seus donos seus condutores. Uma lâmpada fixada num grande pedaço de madeira estacado no chão de barro fazia as vezes de poste, podia-se ver sobre a lâmpada algo que um dia já foi a tampa de uma panela, deveria servir para proteger a lâmpada nos dias de chuva. Enquanto nos distraímos com esse pequeno detalhe, um homem sem botas cruza as luzes dos carros, salta do matagal como se sua vida dependesse de cada passo que desse, corre com a boca aberta, dá dois passos para além da largura do carro que acabou de cruzar e cai, em suas costas um buraco considerável, pelo buraco sangue, em quantidade igualmente considerável. O homem caído olha para o poste improvisado da rua, talvez percebendo o detalhe ao qual há pouco nos prendemos.
*
Não há no Santa Maria ou no Padre Pedro um só estabelecimento, estatal ou privado, nem mesmo há uma praça que ocupe tanto espaço quanto esse supermercado - se por aqui houvesse alguma praça. Estratégicamente colocado próximo às duas entradas do Santa Maria, não seria um exagero dizer que esse supermercado ocupa o espaço de um pequeno sítio, de tal forma que suas proporções intimidam as de qualquer estabelecimento estatal por essas bandas, e é mais frequentado do que qualquer outro estabelecimento nos arredores.
Por volta das seis horas e vinte minutos da terça-feira - dia tão divertido - o senhor Carlos, executor de serviços gerais do lugar, vinha se apresentar ao trabalho; ele não precisava, de fato, chegar até as seis e quarenta, quando de fato as portas estariam abertas, quando o gerente, ou o desafortunado que ele escolhesse, chegaria para abrir tudo e então o senhor Carlos poderia começar sua limpeza e, ocasionalmente, empilhar coisas.
Na entrada dos portões exteriores, da primeira vez que o sr. Carlos levantou os olhos, apenas recentemente abertos, olhou como quem olha o caminho que seguirá, mesmo o conhecendo de cor, lá por onde tantas vezes passou havia quatro não tão pequenos detalhes que lhe fizeram subir calafrios. Sem obedecer a nenhuma marcação do estacionamento, quatro viaturas cortando de qualquer jeito as faixas amarelas que indicam o como se estacionar.
Não era a primeira vez que sr. Carlos via viaturas, não era a primeira vez que ele via viaturas desobedecendo o que para ele seria uma regra inviolável, nesse pensamento um sorriso se mostrou no rosto mal acordado de sr. Carlos. A idéia de ele ter um carro lhe era engraçada. Ele acautelou os passos, teve certeza de passar distante dos carros, e se encostou no portão mais distante dos carros.
Nos minutos seguintes mais funcionários chegaram, alguns vinham das redondezas, assim como sr. Carlos, outros desciam no ponto de ônibus que havia na frente do supermercado, do outtro lado da avenida. Os vinte minutos não foram necessários para que o gerente chegasse, quando o gerente, sr. Armando, desceu de seu Ford Ka vermelho, seus funcionários estavam todos frente aos portões internos esperando sua chegada, as mulheres de braços cruzados para afugentar o frio matinal, os homens de qualquer jeito, os que estavam calados e os falantes, mas todos nos portões mais distante das viaturas. Quem os visse diria que se protegiam de algo.
O gerente não deixou de notar os carros, ao contrário de seus funcionários, e mostrando talvez as qualidades que fizeram dele o gerente, ele fez seu caminho direto até os veículos mal-estacionados, com um esgar que lembrava um sorriso, gritou para seus funcionários:
- Só por que é da polícia pensa que pode fazer o que quer! Cadê eles?!
E foi isso que todos os funcionários contaram aos oito policiais que chegaram às sete horas - o gerente esqueceu de contar sua única fala.
*
Às oito horas nenhum dos policiais ainda sabia responder à pergunta do gerente. "Cadê eles?". Não eram apenas oito os policiais aqui presentes, agora eram dezoito, cada um com uma cara pior que a outra, olhando com a pior das feições para todos que não fizessem parte de seu grupo. todos, sem exceção, suavam, muito.
Os oito primeiros deram a primeira olhada nos carros. No primeiro carro não havia nada que pudesse ser notado a olhos nus. Sem manchas de qualquer tipo. A chave está na ignição. Não há muito o que se dizer. No segundo carro, da esquerda para a direita, a mesma coisa. No terceiro, enfim surge alguma diferença, a lateral direita estava amassada, não era nada que danificasse o carro, nada de muito chamativo, o que era chamativo e ficou escondido dos funcionários do supermercado que não chegaram a ver essa lateral, o que realmente chamava atenção era uma grande e forte tinta amarela que se extendia do amassado atá o final da porta dianteira. Cabo Luz, ao notar a cor da tinta, lembrou dos portões do estacionamento, correndo até eles pode notar o que parecia ser a tinta do terceiro carro firmemente posta na parte direita do portão. Era a primeira vez que notaram que um dos portões do estacionamento estava aberto. Quando o cabo Luz voltava dos portões para confirmar a presença de tinta neles, ele notou algo na traseira do quarto carro, algo que sendo pequeno não poderia ser considerado um detalhe. Nos faróis traseiros daquele sedan uma mancha não mais comprida do que uma caneta escolar, não mais larga do que uma moeda, uma mancha vermelha que se extendia dos faróis brancos aos vermelhos e com esses últimos se confundia; era sangue. Cabo Luz não precisa de peritos para dizer que aquilo era sangue.
Por um instante as feições do cabo Luz evidenciaram tudo o que se passou na cabeça dele e que pode ser resumido assim: "A merda está armada, sangue em uma viatura da polícia e dezesseis policiais sumidos. Merda!".
*
Às oito horas e quinze minutos depois de todos os policiais fazerem suas caras de "Merda!", um jornalista na parte de concreto da cidade recebe uma ligação.
- Tá uma merda aqui na Terra Dura! Tem mais de policial que na porra da posse da presidenta. Um monte sumido.
- Quantos?
- Dezesseis, porra! Dezesseis!
- Já sabe quem está sumido?
- Como eu vou saber desse caralho? Eu tô te passando, é isso, como nós combianamos.
O reporter não teve nem tempo de perguntar onde extamente tudo estava acontecendo, mas não se incomodou muito, chamou um camera, entrou no carro e partiu para o Santa Maria.
Vários minutos passaram antes que Guilherme pudesse ver as viaturas no estacionamento do supermercado, antes disso, ele passou por várias avanidas, cruzou um bairro vizinho, que quase destruiu os amortecedores da van em que estava. Não pensou muito no que iria encontrar, era mais uma história de polícia, sua fonte era segura, iria descer, fazer uma declaração, procurar mais informações com os presentes, talvez, dependendo da gravidade e do quanto de sangue estivesse nas ruas, só talvez, ele apareceria numa daquelas chamadas da emissora; iriam cortar a programação, diriam que a notícia era urgente, ele faria a careta mais grave que conseguisse e anunciaria o motivo da programação ter sido cortada. Avistando os portões amarelos do supermercado, Guilherme põe seu crachá de repórter, desce da van com passos firmes e um tanto elegantes - pelo menso o suficiente para não embaraçar a sua classe. O camera vem logo atrás, um pouco mais lento por causa do equipamento, a pequena equipe prepara o local enquanto Guilerme colhe informações.
Ele se dirige ao policial mais próximo.
- Sargento! - aprendeu a distinguir postos pelo uniforme muito cedo - O que está acontecebdo aqui?
- Alguém está desaparecido - Guilerme continua.
- O senhor sabe tanto quanto eu. Acabei de chegar aqui, só sei que uns colegas deveriam estar com aquelas viaturas e eles não estão. - explica o sargento.
- Alguém sabe dizer o que está acontecendo? - alguma informação alguém deve ter, pensa o repórter.
- O capitão, talvez, ele foi um dos primeiros a chegar.
- Qual é o nome do senhor, sargento?
- Ivan.
- Bom, obrigado, Ivan.
O reporter se afasta esperando que o capitão não seja uma perda de tempo tão grande quanto o sargento Ivan. De qualquer modo, foi bom saber o nome dele, pode facilitar alguma coisa no futuro.
De longe Guilherme localiza o capitão, ali, na frente do portão mais distante dos carros, falando com um senhor. Enquanto caminha um pouco apressado em direção ao sargento, olha seu relógio,
são nove e quarenta e três. Guilherme aprta um pouco mais seus passos, se ele não gravar até as dez e quinze a reportagem só vai ao ar no jornal do meio-dia. "Uma grande merda de fonte, o que foi que ele me indicou? Vá pra Terra Dura! Fazer? Nada! Se nem a porra do sargento Ivan sabe o que está acontecendo... E policiais não são exatamente túmulo quando se trata de guardar segredos.". Restariam ainda vinte passos para o capitão ser alcançado, mas os ouvidos do repórter ouviram algo que seus pés não puderam ignorar.
- Estamos aqui no bairro Santa Maria, onde quatro viaturas foram encontradas abandonadas no estcionamento de um supermercado local, segundo informações que obtivemos, os dezesseis policiais que estavam com as viaturas estão mortos.
Guilerme parou, com visível hraiva na face, e com um pensamento só "Merda, lá se foi minha reportagem!". Enquanto sua mente trabalhava com a raiva recém-nascente, seus olhos se ocupavam em seguir os vários policiais do estacionamento. Todos que estavam ao redor do seu concorrente pararam, como ele, e permaneceram de modo, assim como Guilerme encaravam aquele homem com o microfone. Paulatinamente essa reação foi se espalhando pelos policiais alí, e até algumas pessoas sem farda repetiram o comportamento, como se fosse um vírus. Foram cinco segundo até o vírus chegar ao capitão, mais dez até ele saber o motivo de tanta inação, mais rápido do que se imaginaria possível ele chegou ao concorrente de Guilerme.
Foram passos largos, como se pulassem léguas, correu como se quisesse impedir uma catastrofe que já havai acontecido, não iriam gostar se soubessem que ele não correu, que não chegou àquele filho-da-puta o mais rápido possível, que não o levantou pelo colarinho engomado, que não o encarou com o tanto de raiva que os musculos de seu rosto permitiam. Puxou o repórter para sim, ficaram de rosto quase colados e o capitão Cardoso bufou, touros não bufariam melhor. O ar quente que saia de sua narinas atingiram os olhos do pobre repórter que ainda tentava entender o motivo de estar tão próximo do capitão; mas não houve tempo.
- De onde um bostinha como você tirou que meus homens estão mortos? - capitão Cardoso tinha tanta raiva nas palavras, que a saliva que as acompanhava devem ter paralisado o repórter. - Fala, porra!!!!
Guilerme entendeu, o seu colega e concorrente não tinha fonte nenhuma para o que havia dito. "Provavelmente é verdade" - pensou - "Dezesseis policiais somem no Santa Maria. Estão mortos. Não é preciso ser um gênio para ver isso."
Cardoso apertou o colarinho que segurava, deu umas sacodidelas, aí o repórter começou a falar.
- Tem sangue alí. - apontou para o farol de um dos carros - e não tem nem sinal deles. Eles estão mortos.
O repórter não foi o primeiro a pensar isso, todos alí já tinham pensado, mesmo quem não havia visto o sangue no farol. É uma equação que foi facilmente resolvida por todos alí, mesmo os outros policiais, todos pensaram como Guilerme, mas ninguém falou, a resposta era óbvia e por isso mesmo ficou suspensa no ar do estacionamento, pelo menos até ser conjurada em rede local, e devido à gravidade da notícia, ou em rede nacional.


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